Servidão Voluntária

                Ao olharmos para a história da humanidade nos deparamos com diversas formas de governo. Independentemente de quais formas sejam estas quando nos focamos não só nos governantes, mas também nos governados, encontramos em suas vidas uma ausência de liberdade natural além de podermos identificar aquilo que Étienne de La Boétie chamou por servidão voluntária, isto é, o hábito de aceitar voluntariamente a condição presente, independente do quão sofrível seja. Recorrendo à sua obra “Discurso da Servidão Voluntária” e à obra de Rousseau “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens” podemos compreender no que consiste a servidão voluntária, suas causas e consequências, de que forma a liberdade natural dos homens foi perdida e como por um fim a ela, recorrendo à liberdade civil.

            Um motivo que La Boétie elenca para justificar a existência da servidão é a proteção. Os habitantes de um país podem encontrar um governante que garanta protegê-los, provando ter audácia, providência e prudência para tanto. Outra razão, não menos importante, que o autor destaca é o uso da força por parte do tirano. Uma população pode submeter-se à servidão pela força e ameaçada pelas armas passa a servir suportando seu destino já que não é forte o suficiente para enfrentá-lo. Qualquer que seja o motivo, em ambos os casos, a população é oprimida por quem a governa e por isso era de se esperar que essa aguardasse por um futuro melhor caso submetida pela força, ou caso aceitasse ser governada por este, que tantos bens a traz, não aceitasse a servidão. Entretanto, nada disso acontece. Vemos centenas de países onde seus habitantes vivem privados de liberdade e aceitam a servidão sem nada fazer para mudar a situação em que se encontram. Aceitam a servidão por que rejeitam sua liberdade. Desse mesmo modo, uma grande parte da população estadunidense aceitou renunciar à sua liberdade em troca de uma ostensiva segurança contra os terroristas que ameaçavam a institucionalização do Estado. Ainda seguindo as ideias de La Boétie, a liberdade é um “bem tão grande e tão doce” e uma vez perdida surge lugar para servidão. Mas para ser livre basta querer, qualquer homem que não seja covarde pode ir atrás de realizar seu desejo inerente de possuir liberdade. Sendo assim, por que os homens submetem-se à servidão?

             La Boétie e Rousseau nos respondem: pelo hábito. O primeiro mostra que nenhum homem pode viver servindo sem que seja gravemente prejudicado, sem que sofra danos em sua essência, por isso conclui que ser e desejar ser livre são características inerentes ao ser humano. Mas, embora a natureza humana seja baseada na posse de liberdade, ela é esquecida se não colocada em prática, enquanto o hábito nos molda à sua maneira, fazendo com que nos acostumemos a agir conforme nos foi ensinado, pois é capaz de fazer o homem esquecer a sua primeira condição, que é a de ser livre. Assim os primeiros passam a servir, ou pela força ou por proteção, e se acostumam de forma que os próximos, nunca tendo provado do que é ser livre, habituam-se a servir constituindo- se, dessa forma, a servidão voluntária.

            As ideias de La Boétie nos levam às de Rousseau. Este, como já dito, também considera o hábito a causa da servidão voluntária, além de concordar com a importância da liberdade. Segundo o filósofo iluminista, é a consciência de liberdade que os homens possuem que os diferem dos animais. Nessa sua originalidade os homens passaram a viver coletivamente e isso nada lhes foi prejudicial, pelo contrário. Mas a sociedade constituiu-se de tal forma que a liberdade natural foi totalmente destruída e constituiu-se a propriedade privada. Sua constituição dividiu os homens entre aqueles que eram proprietários e os que não possuíam propriedade sendo que estes para sobreviver tiveram que se sujeitar à servidão. Nesse ponto sua ideia se complementa à de La Boétie, que mostra um tirano submetendo seu povo à servidão, pois o governo serve para legitimar a propriedade privada e consequentemente a desigualdade e a servidão voluntária. Por hábito o povo não se rebela contra os latifundiários nem contra esse governo que politicamente valida a desigualdade, é ele que faz a desigualdade política aparentar ser natural. Entre os homens já existe uma desigualdade natural e está é aumentada pela desigualdade de instituição, pois se adquire o hábito de comparar e de atribuir preferências ao mérito e à beleza. Ou seja, entre os homens já existem diferenças naturais e estas são aumentadas pelo hábito de aceitar as desigualdades adquiridas na sociedade. É também o hábito o responsável por tornar as antigas leis “santas e veneráveis”. De posse da ideia dos dois autores vemos que a liberdade, bem mais precioso que a natureza humana possui, é usurpada de cada indivíduo no processo de constituição da sociedade, de legitimação da propriedade privada e de submissão aos governos e praticamente não se vê resistência a esse processo porque a população está habituada a viver dessa forma.

            Faz-se necessário frisar que Rousseau vê que a liberdade natural foi corrompida de forma irremediável. Visto tal dano e o hábito que se tem em aceita-lo podemos nos perguntar se há uma solução para tais problemas. La Boétie diz que os métodos que os tiranos utilizam para manter a população cada vez mais acostumada à servidão voluntária só são eficazes na parcela “ignorante e grosseira” do povo. Sendo assim quanto maior for a parcela “ignorante e grosseira” de uma população mais fácil é submetê-la a servidão e fazer com que esta sequer pense em contestar. A solução para extinguir a servidão voluntária, que está nas entrelinhas do texto do autor, fica mais clara em Rousseau. Esta solução se resume em só uma palavra: educação. O temperamento, a força, ou seja, a capacidade de contestar provem mais da educação dada do que da personalidade dos indivíduos. Aqueles que são educados e que conhecem as artes e a ciência se diferenciam dos que não são, pois são capacitados de enxergar que a servidão não deve ser aceita e a educação lhes dá a capacidade de contestar, de agir e consequentemente conseguir extinguir a servidão voluntária e a propriedade privada.

            Para tanto a educação não pode ser feita de qualquer forma, em sua obra Emílio Rousseau trata especificamente deste tema, mas por ora basta saber que para ele a educação deve ser no ritmo das crianças onde elas possam sentir a necessidade de aprender, para que de fato aprendam e que se possa se constituir um debate de igual pra igual em relação ao governo, de forma que a educação sirva para complementar o projeto político que Rousseau tem em mente. Ou seja, indivíduos educados devem conseguir instituir uma liberdade civil (já que a natural foi destruída) e um governo onde o povo seja soberano e a vontade geral prevaleça, pois a população tem capacidade de vigiar seus governantes. Uma educação falha como a que se tem atualmente no Brasil pode desencadear na redução considerável no número de movimentos estudantis. Esses movimentos já tiveram notável importância, mas a deficiência da educação, unida à herança da ditadura militar e ao sucesso econômico brasileiro, fizeram com que os estudantes, de forma geral, se habituassem ao governo e ao espírito individualista e pequeno-burguês, sem ver e não vissem a necessidade de unir-se em grande número para protestar. Vale lembrar que, para Rousseau, a vontade geral não é sinônimo de vontade da maioria, mas sim uma opinião (partilhada por muitos ou por poucos) que levará a um bem coletivo. Ou seja, uma fatia social esclarecida e bem-educada poderia de facto visualizar, racionalmente, o melhor para a comunidade que a cerca. Daí a necessidade de uma formação crítica para os estudantes, universitários ou não, para que busquem aliar seus conhecimentos técnicos à militância em busca de um cenário em que possam viver segundo os princípios da liberdade civil.

            Sendo assim, vemos claramente que, seja primeiro pela força ou por proteção, há muitos séculos os primeiros homens abriram mão de sua liberdade e por hábito as futuras gerações deixaram de conhecê-la e consequentemente passaram a servir de forma voluntária, por nunca terem conhecido outra maneira de viver e a educação de tão falha se fez incapaz de levar os homens à busca por mudanças. Como nos resume Manuel J. Gomes, tradutor da obra de La Boétie para o português: “Hoje, como nos tempos de La Boétie e Montaigne a alienação é demasiado doce e a liberdade demasiado amarga, pois está demasiado próxima da solidão. E da loucura”.

3 respostas para ‘Servidão Voluntária

  1. Gostei muito do texto de vocês, pois achei que conseguiu transmitir a ideia/ opinião do grupo de forma muito coesa e linear no texto. As sitações foram, na minha opinião, colocadas nos momentos certo e projetaram exatamente a explicação anterior.
    Mas o que mais me chamou atenção no texto foi a parte em que vocês comparam a renucia da liberdade com o comportamento do povo norte americano frente a segurança do seu país. Eu realmente acho que eles renunciaram a liberdade deles, porém eu entrelaço esse pensamento com outro explicitado ao final do texto que fala sobre a educação. Assim, unindo as duas partes, diria, que na visão de La Boétie eles renunciam porque lhes é ensinado a renunaciar desde da infancia quando existe o primeiro contato com a ideia de pátria, ou seja, eles são ensinados a renunciar a liberdade e a vida pelo país, e o fazem gostando e admirando os seus atos. Exemplificando; quando são chamados para guerrear em outro países com tanta frequência e quando viajam menos pelo medo de uma ataque terrorista. Os americanos não tem uma educação falha como vocês disseram, eles tem uma educação projetada para a servidão voluntária; servir ao país e ser condecorado por isso.

  2. O texto exemplifica bem aos argumentos de Étienne de La Boétie em “Discurso da Servidão Voluntária” e à obra de Rousseau “Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens”, concordo ainda com a Sra. Mandari ao analisar que os americanos renunciam a liberdade, pois dês do início foram ensinados a abdicar de seus desejos e vontades em prol da pátria. O texto de vocês fala da educação como forma de combater ou até acabar com a servidão voluntária, “(…) A solução para extinguir a servidão voluntária, que está nas entrelinhas do texto do autor, fica mais clara em Rousseau. Esta solução se resume em só uma palavra: educação (…)”, contudo, vimos que quando o homem nasce à sociedade já esta constituída, e simplesmente serve, pelo fato de nunca ter conhecido a liberdade, como vocês mesmos falam: “(…) Mas, embora a natureza humana seja baseada na posse de liberdade, ela é esquecida se não colocada em prática, enquanto o hábito nos molda à sua maneira, fazendo com que nos acostumemos a agir conforme nos foi ensinado, pois é capaz de fazer o homem esquecer a sua primeira condição, que é a de ser livre (…)” O que seria a educação se não mais uma ferramenta de controle da sociedade por parte do Estado e, mais um mercado para a sociedade privada? Entretanto seguindo a lógica Weberiana para educação temos uma sociedade esclarecida.

    Agenor Antonio de Freitas RA: 00102532

  3. Acho muito interessantes as idéias de La Boètie sobre servidão voluntária. Como se zombando dos não esclarecidos – ou não educados -, ele tenta entender, num primeiro momento, como um indivíduo se submete ao outro, porque abre mão de sua liberdade e a concede ao outro, que não é superior nem inferior. Se somente um, ou um grupo de poucos, está no poder, por que todos os outros não se rebelam? Como um só homem consegue reunir exércitos a seu favor para controlar a população? Pensando-se por esse lado, realmente é difícil compreender, parece uma idéia absurda. Mas o autor explica que, na maioria das vezes, isso se dá pela repressão de um tirano. Para os primeiros a vivenciarem a servidão é difícil, pode haver algumas revoltas, mas conseguindo o soberano se manter no poder, ou manter em aberto um poder em si, “mais forte” que o resto da população, as gerações seguintes vão se acostumando até um certo ponto em que os homens já nascem nesse meio. Ao chegar nisso, segundo La Boètie e Rousseau, é preciso a educação para que os homens percebam que a servidão voluntária à qual estão habituados não é algo normal, que eles podem reaver sua liberdade. Porém, a servidão voluntário continua justamente por a educação não cumprir seu papel de desenvolver seres que pensam por si só, e não da maneira que “devem” pensar.

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